A pandemia está nos apresentando a uma vida familiar sem filtro. Um grande espelho que faz enxergar o que não necessariamente estamos dispostos a ver. Uma imersão compulsória para dentro da gente e da casa, que pode mostrar como a orquestra intramuros desafina.
Porque é mais fácil ter a família perfeita quando não se fica 24 horas com ela em uma rotina que passa longe de ser de férias. É como descobrir a sujeira embaixo do tapete – que, literalmente, você descobriu depois que começou a por a mão na massa e fazer faxina. São situações das quais tentamos nos esquivar no dia a dia dos tempos normais, tampando o sol com a peneira, procurando desfocar para não encarar certas verdades, que agora estão gritando com a gente.
Talvez até desconfiássemos de que havia alguma coisa errada com nossos relacionamentos mais íntimos, aqueles entre marido e mulher, filhos e nossos pais. Mas íamos empurrando com a barriga porque, afinal, não era tão difícil assim coabitar com os outros moradores nas poucas horas entre o despertar e o café da manhã ou entre o jantar e a hora de dormir.
Mas agora acontece uma espécie de intensivão e a tropeçamos na vida real a cada mudança de cômodo, sem chance de sair correndo, ir tomar um cafezinho na esquina ou se refugiar no shopping para espairecer porque, literalmente, não tem para onde correr.
Mas a vida era assim tão diferente, tão cheia de aventuras antes da quarentena? Na verdade, para a maioria de nós, não. Mas o que fazia tudo ser suportável era justamente a não convivência, as relações mais superficiais. A vida estava mais baseada no que acontecia da porta para fora. E a rua, às vezes, nos leva a assumir personagens e motiva uma fuga para longe de nós mesmos e daqueles que deveríamos chamar de pares.
Porque nesse antigamente de quase dois meses atrás tinha diferença entre ser e estar: ou éramos ou estávamos. Agora não. Agora somos e estamos no mesmo lugar, sem maquiagem e de pijamas, tentando reconhecer quem são esses estranhos que dividem a pasta de dentes conosco.
*Texto publicado em 5/05/2020 em https://anamaria.uol.com.br/noticias/familiafilhos/quarentena-como-a-convivencia-mostra-a-vida-como-realmente-ela-e.phtml
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